(Segunda parte do conto “Umbigo”, publicado do dia 01.07.20. Clique aqui para lê-lo)
Dias como esses, o perigo é tropeçar, entende? Silêncio. Com “dias” quero dizer os tempos, falar… E o tropeço, esse de que eu falo, é pra dentro. O perigo é esse, sim. De cair e não voltar pra. Fora. Sendo fora aquele lugar onde todos deveríamos estar.
O esforço então pra levantar-se deste tropeço, isso que eu estou chamando de tropeço, mas na verdade é queda, é. Parecido, não, parecido não, é equivalente, é enfiar a mão pela garganta e retirar-se de lá, de dentro, pra. Participar daquela reunião à distância, por exemplo, ou, atender a uma ligação, ou, sair da cama e ir até o sofá pra. Sentar-se um pouco, pelo menos, mudar. De posição, pra mudar de posição. Ficar na vertical, pelo menos parcialmente e depois, em algum momento, retirar-se do sofá e ir até a cama, quando houver sono, e dormir, na horizontal, na cama, é. Conduzir-se até a cozinha, quando houver fome, fome que não pode nem exceder nem faltar e. Tomar um banho também. Ou estar aqui, por exemplo. Pausa. Não aqui neste lugar, na minha casa, no meu quarto, não aqui, porque agora não há mais um lugar e com lugar quero dizer espaço, não há mais o espaço só. O tempo. Desta sessão, os maisoumenos 45 minutos que eu passo não onde mas quando, os minutos do quando-não-onde da análise. Deste, atendimento à distância, você. Sabe, não há um espaço onde eu me sente, ou melhor, me deite, um divã aqui em casa onde eu possa fazer a boa e velha análise, estar em posição de analisando, é mais. Como, onde, eu estiver, mesmo, como e onde der. Pelo meu apartamento pequeno de jornalista, hehe. Pausa. Se estiver na sala será na sala se estiver no quarto será no quarto e mesmo se estiver no banheiro ainda suja eu nem limpo a bunda, haha. Ele não dá risada. Silêncio.
Bom, como eu estava dizendo. Pausa. Não sei o que eu estava dizendo, então essa frase não faz sentido e afinal ele não fala nada há uns bons minutos e está mudo e eu não saberia dizer se a ligação caiu se ele desligou ou dormiu, as. Desconfianças, que já não são poucas, em relação ao analista assim longe, triplicam, quadruplicam, pululam. Porque, no presencial, pelo menos. Pelo menos as dúvidas em relação ao que se passa atrás do divã ao que se passa nas minhas costas são apenas: dormiu ou morreu, não. Agora não. Ele pode ter desligado apenas pode ter colocado a ligação no mudo e estar assistindo a um filme pode estar lendo um livro pode inclusive estar transando com a sua mulher que eu nem sei se existe mas se existir com certeza é muito bonita e tão gostosa quanto ele pode. Estar fazendo o jantar já anoiteceu pode só ter dormido ou morrido. Apenas dormido ou morrido. Os mesmos medos de antes. Tudo como antes, mas eu não tenho. A menor coragem de perguntar: você está aí?
Ele pigarreia. Silêncio e alívio.
Bom, como eu estava falando, eu. Não gosto do trabalho à distância das relações à distância, mas, ao mesmo tempo, eu sinto, eu sinto que são mais fáceis. Que a vida é pior e mais fácil. Agora ele vai dizer: mais fácil?, talvez complemente com: mais fácil em que sentido? e eu vou replicar com: lidar com as pessoas cara a cara é muito complicado e à distância existem duas câmeras e dois computadores que se interpõe à comunicação, então a tecnologia faz o trabalho que o meu corpo faria presencialmente, isto é, atrapalhar tudo sempre. Além disso, em casa, eu encontro menos. As pessoas. A tréplica será um sonoro “hm” ou nada e isso é tudo o que esperamos de um analista.
Inércia, eu digo. O poder da inércia. Entende? Não, não faz sentido esse tipo de pergunta pra esse tipo de pessoa e agora. Ele não vai dizer se entende ou não, mas eu insisto, sempre em perguntar, mesmo assim. É apenas retórico, apenas fático, uma expressão fática para manter a conversação. Comigo mesma. Em dia.
Queria muito que a sessão acabasse, não aguento mais falar nem, ser ouvida sequer, me ouvir. Mas eu sei, sim, que ainda não dei material suficiente pra satisfazer sua escuta, que não alimentei direitinho o bichinho da terapia, não foi. O suficiente pra obter dele seu costumeiro: Ok, nos vemos na segunda. Não fui o suficiente. Não disse o suficiente.
Fale sobre a reunião, ele pede. A de hoje?, eu digo. Sim, ele diz. Comecei a sessão falando dela, então fiz um pequeno desvio, tomei um atalho e agora. Ele demanda que eu pegue o retorno.
Eu quebrei a xícara, na verdade, ela não quebrou sozinha, eu. Atirei contra a parede pra não. Atirar contra o computador, pra não quebrar o computador, sabe?, nem é meu é da empresa, eu não posso… Se fosse seu você quebraria?, ele pergunta, Não, eu respondo. Não quebraria, claro que não, mas
Apenas. Sem mas, apenas. Pausa.
Eu queria muito dar para o meu chefe, é isso. Silêncio. Não trepo há muito tempo deve ser isso, tesão e raiva acumulados, sabe? Isso sim ele quer ouvir, ah, quer. Talvez isso seja o suficiente pra ele. Eles gostam, no fundo é sobre isso que eles querem ouvir, sempre, é tudo sexo e tara e perversão pra eles. Pra mim também, ora. A vida sexual de um psicoterapeuta deve ter um alto grau de luxúria e orgasmo e cu, eu. Queria muito dar pra você, caro analista, queria demais, aliás, o que acha? Não, isso eu não digo, não. Tenho coragem, mas. Ouvi dizer que nem precisa, que eles sabem. A tal da. Transferência. O tal do efeito pica de mel que todo terapeuta tem. Eu, pelo menos, conheço umas cinco, pelo menos umas cinco apaixonadas pelos homens que seguram as suas vidas íntimas nas mãos, sob o perigo de deixar que ela escorregue por entre os dedos, são todas, umas ridículas. Feito eu.
Meu chefe é um imbecil, ele. É casado e lindo e imbecil, tem. Uns 15 anos a mais do que eu e uns. 15 centímetros também. Vive seduzindo todas as mulheres com quem trabalha e os homens também. Pausa. E talvez. Pausa. Eu possua, uma espécie de desejo de autodestruição. De mergulhar tão fundo na merda de me foder de ser fodida pelo filho da puta que já me fode todos os dias, mas pelo menos em outra posição. Pelo menos gozar. Entendeu? Uma destruição prazerosa. Pausa. Ou um prazer destrutivo. Silêncio. Que tal essa inversão, hein, analista?
Talvez essa seja uma das coisas que me mantém trabalhando, uma das coisas que me impede de desistir de mais uma coisa, desse trabalho. Eu na verdade devia agradecer o desgraçado. Devia. Passei toda a tarde, inteira escrevendo. Não, redigindo a matéria, não comi, nem. Levantei, mal respirei porque. Tudo o que eu quero na verdade é entregar uma matéria boa, bem boa, ótima, e ouvir vamos publicá-la amanhã e ouvir parabéns e ser aceita e reconhecida e elogiada e quem sabe uma menção ao meu cabelo, cresceu e está muito bonito. Não fosse, essa necessidade, de agradar, talvez. Eu nem sequer trabalhasse
Enfim eu digo algo impactante o suficiente para que ele encerre a sessão, mas. Apesar do alívio por inserir um ponto final nesta tortura, quando ele diz: Nos vemos na segunda-feira, mesmo assim, ainda assim. Eu sinto como. Se ele largasse da minha mão, sem que eu tivesse notado que ele a agarrou. Como se, esse suposto ponto final na verdade fosse uma interrogação e eu desejasse retroceder até o começo da sentença, da sessão, pra. Procurar onde foi que eu o perdi
Ok, eu digo. Até segunda, ele diz. Até, eu digo. Acesso a aplicativo do banco, ainda deitada pra fazer a… Transferência, haha. Exatos 215 reais endereçados a ele que tem nome e sobrenome e não. Se chama meu analista.
Coloco o celular no travesseiro vazio ao lado e olho pro teto escuro do quarto. Me dou conta de que esqueci de ligar a luz, passo os dedos pelos meus cílios interrompidos sinto prazer e fome e acho bom. Pelo menos ainda sinto prazer. Penso em levantar-me e ir até a cozinha comer e verifico que ter fome já é força propulsora suficiente pra me erguer, muito bem. Pelo menos ainda tenho fome.
Os pés não esperam grandes conclusões pra me conduzir à geladeira, as mãos agem sem necessitar de comandos, pão maionese queijo presunto tomate maionese pão. Sento no sofá, ligo a televisão, o fim. Do dia é um vão amplo cujo o perigo é sempre o mesmo e constante. Mesmo do começo, do meio, mesmo do fim, que indiferenciam-se no líquido amniótico das horas, é. Tropeçar pra dentro, isso, e não mais levantar-se.
Mas eu já disse isso hoje.