Rosa e Joana dançam tango no 7° andar às segundas e quartas-feiras. Terça bebem cerveja na sala, quinta brigam pela louça, no final de semana riem e gozam, repetidas vezes.
Quem mora ao lado escuta, claro, com prazer, por vezes, curiosidade, por outras, incômodo, afinal também; seja por una cabeça ou mi Buenos Aires querido, interpretados pela gravidade de Rosa, ensaiando para a live que ainda não teve coragem de fazer; ou os passos de Joana, professora e pernambucana, ensinando maxixe sem par, sendo homem e mulher em videoaulas in english para estrangeiros entusiastas, tarados por folclore brasileiro. Casal há poucos meses, a pandemia as enclausurou num apartamento de um quarto, sem sacada, no centro de São Paulo, de solo fértil, mas poucas chuvas e lá dentro, equilibravam-se no mesmo fio instável de intersecção que, na Belle époque latino-americana, uniu à distância as supracitadas e transgressivas manifestações artísticas, um século depois muito confortavelmente alçadas à Cultura.
Um dia choveu a cântaros, a luz acabou e Joana deixou um copo quebrar. Sem relacionar-se com as sucessivas desgraças que acometiam o cômodo ao lado e aproveitando interlúdio, o lamento argentino de Rosa alcançou decibéis imprevistos. Aquela que guardava as explosões apenas para o sapateado, deixou-se arrebentar e respondeu à altura: berrou um calaboca acústico tão ressonante que fez o vizinho destilar em baixa resolução eu sabia que tinha algo errado com essas lésbicas. Acontece que uma voz não foi capaz de calar a outra e a milonga prosseguiu num galope melancólico e tinto do qual só os argentinos são capazes. O acento agreste não entregou a vitória de bandeja à porteña, que atirou ao chão o vaso de gerânios, provocando mais alastre. A esta altura, a coreografia não se limitava ao quarto e navegava pela cozinha, sala, banheiro, numa maré imprevista até para a dançarina experiente.
Os curiosos e descarados vieram à janela contemplar o espetáculo. A crítica elogiou as escolhas estéticas relativas ao cenário e as soluções inovadoras dos técnicos: fraturas luminosas de vidro, porcelana, cerâmica, argila, dentre outros materiais desconhecidos, inundavam o piso. Os mais ingênuos se apegavam à trilha sonora e aos efeitos especiais do tempo; os mais ousados chegaram a contribuir com um título para a obra: naufrágio fúlgido.
Quando a cortinas caíram, ali onde parecia haver só rompimento e vergonha, exaustas e apátridas sobre seus restos, elas descobriram a composição de uma nova dança à duas: a dor. Num retrato distante, acharam-na bela, decerto mais original do que as notas que até então reproduziam, e quiseram emoldurar o resultado. Deixaram os cacos sobre o chão, sem retocá-los, e, nos anos seguintes, aprenderam a quebrar, no tempo certo, cada um dos objetos adquiridos. Talvez com intenção de dançar sobre eles, talvez apenas de vê-los brilhar.