Entre 10h e 11h, mais ou menos, hora que o sol bate, ela aparece na varanda. Eventualmente leva o computador para trabalhar, ou apenas o caderninho de capa preta, fuma seu cigarro e observa. Por um lado, seria um bom momento, tendo em vista a exposição, por outro, neste mesmo horário, os vizinhos vão também às suas janelas e varandas aproveitar a luz. Pude perceber que os andares mais altos têm o privilégio de receber iluminação por mais tempo. Acredito, inclusive, que este seja um fator de valorização do meu imóvel, no penúltimo andar. Considerar isso quando for me mudar daqui e vendê-lo.
Ela almoça por volta das 13h, mas não é muito precisa, há dias em que come antes, outros depois disso, uma vez notei que ela deixou de almoçar. Daqui, não pude ver o que estava fazendo e por que não se alimentou, o sofá ficou vazio e o quarto também. É provável que estivesse trabalhando, ela trabalha bastante.
Há partes de sua casa que meu ângulo de visão não alcança: uma parcela considerável da cozinha, um pedacinho do quarto e o que acredito corresponder a 35% de sua sala. Isso se deve à posição do meu apartamento em relação ao dela, no prédio da frente, bem como à distância de dois andares que nos separa.
Esta parcela que eu não vejo de seu mundo, imagino. Acredito haver uma mesa para as refeições, de madeira maciça, quatro lugares, próxima ao sofá, redonda ou quadrada; do outro lado do cômodo, próximo à estante branca abarrotada de livros, a qual eu consigo ver, um item ornamental, como um cacto de grandes proporções, ou um quadro, ou ambos, provavelmente ambos. E isso é tudo que minha criatividade vislumbra. Observando os apartamentos diante da minha janela, penso que ela tem espaço suficiente para si. É uma sorte haver esses que vejo por completo, diante dos meus olhos, isso facilita a visualização do que eu não conheço em seu universo e, por conseguinte, minha ação. É até muito espaço para uma moça que mora sozinha e não tem com quem dividir as coisas. No prédio dela, há pequenas famílias e casais também. Ela, pelo menos do lado que eu posso ver, é uma das únicas moradoras que vive sozinha. Na verdade, muito do que ela tem me parece em demasia para uma garota. Tampouco consigo compreender de onde vem o dinheiro para financiar seu imóvel e suas regalias, seus gostos e costumes atestam uma vida de certos luxos, hoje posso afirmar.
Todos os dias ela bebe, quase sempre à noite. Imagino que comece enquanto prepara seu jantar e continue também durante a refeição, mas não posso ter certeza. O que me leva a esta hipótese é que, ao terminar de comer, ela sempre traz consigo uma bebida, já parcialmente consumida. Logo se dá conta de que não apagou a luz da cozinha, retorna para desligá-la e vem para sala, onde assiste a algo na televisão, ou escreve em seu caderno. Decerto é nos detalhes que conhecemos as pessoas, dos poucos costumes instáveis que ela tem, este: o de nunca apagar as luzes ao sair dos cômodos, característica confirmatória de minha hipótese central acerca de sua personalidade.
Ela está sempre com ele, carrega o caderno consigo pela casa e, de fato, este hábito me incomoda. Seja dia ou noite, quente ou frio, em sua hora de descanso ou trabalho, lá está, não entendo e por isso me incomoda. É quase uma extensão de sua mão. Daqui não consigo ver seu banheiro, mas ela deve escrever até lá.
Às vezes age como se houvesse mais alguém na casa: canta, ri, dança, fala, gesticula. Claro que ela realiza, vez ou outra, chamadas de vídeo ou voz (consigo diferenciar uma da outra pela posição do celular em relação a seu rosto), mas não me refiro a estas práticas, cada vez mais habituais nas vidas privadas dos apartamentos, e sim a solitude que ela pratica ativamente e sem vergonha. Ela fala consigo, dança consigo, canta só.
A faxina é sábado, por conta da rotina de trabalho, acredito, às vezes domingo. Nesses dias ela acorda cedo, aspira, passa pano, limpa cada canto do seu espaço entre às 9h da manhã e às 13h. Afinal almoça, na varanda, e bebe, escreve no caderninho preto, olha pela janela. Dia desses me peguei pensando como o caderno permanece o mesmo desde que comecei a observá-la, concluí que talvez ela tenha vários da mesma cor e essa possibilidade me desequilibra.
Ela nunca me viu. Tenho esta certeza, em primeiro lugar, porque seu apartamento está abaixo do meu. As pessoas tendem sempre a direcionar o olhar para baixo de suas janelas, quando querem observar a vida alheia, não elevá-lo. Em segundo lugar, porque eu me escondo.
A certa altura da noite ela se recolhe. Não consegui, até agora, compreender as variáveis envolvidas na decisão “ir para a cama”, que oscila, de acordo com o dia, num intervalo aproximado de duas horas, o que é bastante, em termos de rotina. Este é um dos fatores que mais dificulta o meu trabalho. Há dias em que ela se recolhe mais tarde porque bebeu a mais, outros em que o álcool resulta no comportamento oposto! Tampouco descobri se ela logo se põe a dormir, ao se recolher, ou faz algo no quarto, antes disso, porque, uma vez lá, fecha as janelas e não me deixa mais vê-la.
Eu nunca me recolho antes dela e procuro sempre acordar muito cedo. Às seis, a primeira xícara de café já está na boca. Desta forma, consigo rastrear suas atividades desde a abertura da janela do quarto pela manhã, com frequência após um banho, até o fechamento e o consequente recolhimento da moça. Desde que isso começou, ademais, aproveito as alvoradas para admirar o nascer do dia, benesses do ofício pelas quais passamos despercebidos se não tivermos o olhar atento. Para mim, há no mundo poucas coisas mais belas do que as paisagens que a natureza cria.
Gosto de beber enquanto ela bebe, para acompanhar, mas com mais moderação e menor variabilidade, claro. Sou apegado às tradições, ademais, e por isso sempre escolho a cachaça; à cada dose, tomo um copo d’água, tampouco pretendo ficar como ela. Seus hábitos, por outro lado, apresentam-se de maneira inusitada, pelo menos para mim e a despeito de toda minha observação, nunca sei quando será o dia do vinho, da cerveja, do uísque, ou dos drinks. Quando vai beber só uma dose ou a garrafa inteira.
Houve uma vez em que ela foi dormir muito tarde, logo no começo, era sexta-feira. Teria sido um momento adequado, mas a situação se configurou prematuramente, eu ainda planejava a operação. Talvez eu tenha carecido do tal senso de oportunidade, na ocasião, mas, por outro lado, não me perdoaria se agisse como um precoce. Naquele dia, por ainda desconhecê-la, acreditei que madrugadas melancólicas ao sofá, como aquela, fossem ser mais frequentes, mas isso não ocorreu.
Ela também tomava cachaça, neste dia, uma das únicas vezes que a vi apreciar o produto. Na realidade, ela não a apreciava, mas tragava a bebida. Depois de algumas doses, o corpo já ocupava todo o sofá, a vi chorar pela primeira e última vez. Os ombrinhos tremiam, as mãos iam toda hora ao rosto, enxugava os olhos e o nariz na camisola, revelando vez ou outra sua nudez. Permaneceu assim, banhada nas próprias lágrimas, esparramada ao lado o caderninho, secando a garrafa de cachaça, durante meia hora. Depois, ao que tudo indica, passou a ver algo engraçado na televisão, porque começou a rir. A movimentação, é evidente, me pareceu esquisita: ria e bebia, depois de ter chorado da maneira deveras dramática. Já eram duas e meia da manhã, eu não aguentava segurar o sono, quando resolvi fazer um café e um sanduíche, tinha desistido de acompanhá-la na bebedeira à meia noite. Ao voltar, me deparei com uma cena inacreditável, que encerrou por completo o sentido da minha missão, ali eu entendi que estava lidando com o objeto certo, eram ela e a sua depravação que eu queria. Com a mão direita dentro da calcinha, ela esfregava com força e velocidade, pra cima e pra baixo, na outra mão o copo, levava a direita à boca, então a esquerda. Ficou ali, diante das janelas e seus espectadores em potencial, durante 20 minutos de um espetáculo que durou horas; muita lubrificação, álcool e cuspe depois, descansou a direita sobre a perna, voltou a ver televisão e rir. Deve ter gozado umas 3 vezes, enfiado a mão na boca umas 15 e eu nunca imaginei presenciar uma cena como essa em vida. Às 3h30 da manhã, recolheu-se enfim, mas eu já não podia dormir.
Espero que hoje seja mais um dia como aquele. Essa esperança se renova todos os dias, mas há dois meses acaba frustrada. Nenhum outro se estendeu tanto madrugada a dentro ou foi tão patético quanto aquele. Minha mãos coçavam, suei feito um porco, meus braços formigavam, quase quebrei a mesa com a porrada que eu dei, mas eu me contive e acredito que irei colher os frutos da minha parcimônia.
*
Há uma hora e meia ela não aparece, deve estar terminando de jantar. Chuto vinho. Essa semana já tomou drinks e cerveja, falta o uísque também. É uísque, lá vem ela e o caderninho, nem ligou a TV, sentou-se logo na varanda, caneta na mão.
Ela tem móveis e louças refinadas. Até agora, nunca a vi usar a taça errada, tem uma para cada tipo de bebida e há, inclusive, uma diferença entre a de vinho branco e tinto, sendo esta última muito alta e um pouco esquisita.
Hoje ela escreve há mais tempo. Mas eu não me esqueço de que pessoas como ela se comportam assim, dessa maneira imprevisível, sem compromisso com a rotina. Talvez esteja ali há uma hora, ou mais: uma hora e meia, neste minuto.
Nem com a saúde de suas costas ela tem algum compromisso, vê-se pela postura. É uma varanda considerável, se comparada ao tamanho do apartamento em si. Talvez tenha 2,5m por 1,5m, o apartamento uns 60 m². Ali ela tem espaço para uma pequena mesa de vidro, sobre a qual ela escreve, e duas cadeiras de palha, baixas, a mesa chega bate no peito, ela tampouco é alta. Tem também uns vasos de planta que, por mais decorativos que sejam, não deixam ser um desfavor para o aproveitamento de espaço.
A mão vai pouco ao copo, o copo pouco à boca, a cabeça mal sai da posição, caderno, as costas encurvadas.
Estamos há duas horas aqui, parados, o movimento nas outras casas, ao contrário do nosso, é espasmódico, o mundo parece contradizer a disposição psíquica dela, ou neutralizá-la, os casais brigam, as os filhos brincam, os adolescentes dançam e faz calor. Hoje sua imobilidade é inusitada e contradiz a razão.
Pela primeira vez talvez tenhamos bebido uma quantidade de álcool equivalente, porque ela bebeu pouco até agora. Eu agarro o copo no instante que ela agarra o copo, o levo à boca assim que ela o leva à boca. Aqui não tenho cadernos para poder escrever como ela, mas tenho uma caneta, ótimo. Vou usar minha própria perna e registrar cada movimento seu, assim que terminar de imitá-lo. Se ela virar sua cabeça, virarei a minha, quando ela parar de escrever, pararei de escrever, o que ela fizer, farei. Ela inspira e expira, eu também, escreve e segue escrevendo, eu também, chuto que também morde os lábios, registro isso, levanta um pouco a cabeça para observar a própria casa, escrevo em minha coxa, então estica por completo o pescoço e as costas, ação mais complexa realizada até a agora por seu corpo desde que se sentou ali, se encontra perfeitamente ereta agora e, que surpresa, levanta-se, tudo com muita calma. Então decido imitá-la também, mas, no momento em que contraio os músculos da perna para levantar-me, ela se vira! Com rapidez, se vira para mim, quase como para flagrar minha imitação, me escondo, mas sei que ela me viu porque o seu olhar se dirigiu muito acertivo em minha direção, como se já soubesse que estou aqui. Volto a olhar para ela, ela retribui com um sorriso inédito, consciente. Justo hoje, hoje, o dia era hoje, ela olha mesmo em minha direção. A Raging Hunter está embaixo da minha cadeira, não pode ser, não pode ser que justo hoje, ela, merda. E ela sorri. Meu Deus, como se… Como se soubesse que eu estou aqui olhando para ela, planejando há meses, como se… Ela não ri, ela gargalha, seus lábio dizem vem, eu seguro a RT44H com a mão direita, acaricio o cano da arma com a mão esquerda e empunho, ainda embaixo da janela e escondida, na ilusão de que talvez ela não saiba. Não pode ser. Ela então arranca a blusa, deixa os seios de fora, mostra no peito o coração com o indicador e ri. Depois leva o dedo à testa e gargalha para mim. Levanto a arma e miro. Agora não tem mais volta e ela sabe, me vê, vê as minhas mãos, a Raging, e permanece ali, nua, oferecendo o próprio corpo em sacrifício, feliz. É isso, enfim, é agora, a missão chega ao fim, ela ri. Eu posiciono os dedos para pressionar o gatilho, inspiro coragem e ela para de escrever