Eu sei de cor o número de mortos pelo vírus, mas não sei. A data de hoje, me dou conta. Os olhos checam o canto inferior direito da tela: dia vinte e cinco, o mês é julho. Não, junho. Mês seis.
São onze e quinze e esta é. A segunda reunião do dia, é. Quinta-feira.
Quem fala do outro lado, não sei que lado, eu na verdade não sei de que lado as coisas estão, as pessoas. Onde estão. Com certeza não está do outro lado do meu computador, lá está, um vaso de suculentas, as únicas plantas das quais eu consigo cuidar, deixo. Perto da janela pra. Pegarem sol. Não está do meu lado, com certeza.
É um homem, branco, de meia idade masculina – que difere por aproximadamente dez anos da meia idade feminina segundo especialistas – grisalho, terno-e-gravata, todo o conjunto, quem fala, a. Situação ostenta certa solenidade e eu. Deveria prestar atenção, dia vinte e cinco de junho de dois mil e vinte às onze e dezessete da manhã, canto inferior direito.
Desligo a minha câmera e percebo a respiração presa. Solto. Esta é uma das, se não a única, vantagens do trabalho à distância, em isolamento, é, poder desligar a câmera e impedir que os outros vejam você, vejam a sua cara, sua casa, você pode. Se masturbar, beber, fumar um cigarro, com a câmera desligada, mas eu. Só. Choro de vez em quando, quando fica muito difícil, choro de raiva e faço. Caretas, grito ou mostro o dedo do meio. Não tenho. Coragem de ir ao banheiro fazer cocô ou xixi, esses dias. Quase fiz na cadeira, mas. A tempo eu dei conta de pedir, eu tive coragem e me orgulho disso, eu abri o microfone, interrompi os meus chefes e pedi por favor pra ir ao banheiro durante a reunião, eles. Acharam engraçado. E deixaram.
Enquanto o homem branco de meia idade, com quem eu gostaria muito de trepar, não fosse isso tudo, e talvez conseguisse mostrando um pedaço de coxa ou de peito ou cravando os olhos na sua boca, fala, minhas mãos estridentes caminham em direção às extremidades da mesa sobre a qual está o computador e a reunião. Os dedos se agarram à borda do penhasco de vidro como. Se uma pedra estivesse prestes a se soltar como. Se a suas vidas dependessem disso. E dependem.
As unhas que ainda restam que ainda. Não foram carcomidas pela ansiedade e pelo tédio, meus. Mais íntimos companheiros de isolamento, de. Vida também. Recortam a carne dos dedos e a linha de pele vermelha onde deveria haver unha e não há dói. É mais uma ardência do que uma dor. Sorte minha. Ser apenas nas unhas. A ardência, não a dor.
E, no momento em que o homem gesticula palavras em inglês pra tornar sua fala mais adequada como se. Não houvesse em português palavras adequadas o bastante como se. Nós fôssemos apenas uma mal traduzida nação, uma mal composta língua na qual não há expressões suficientes pra suprir a imensidão de conhecimentos produzidos na sua área, como se fôssemos qualquer assistemática produção humana que não está ao alcance da vasta produção intelectual do seu campo. Neste momento. A mão direita se solta da beira da mesa, alcança a xícara de café que eu gostaria que fosse um copo de cerveja ou de conhaque e a atira contra a parede à direita apenas pra. Não jogar contra a tela do computador, pra não. Fazer muito pior, a verdade
É que acordei com uma vontade corrosiva, um impulso, um vácuo que estou tentando. Preencher e esquecer e não submeter-me a, mas está. Um tanto difícil e. Quanto mais reuniões e mais goles de café mais difícil é. Não.
O homem nos interpela do outro lado, parece recordar-se de que há outro lado eu, preciso, ligar a câmera.
Outros homens têm opiniões, em rebote, homens que têm muitas opiniões pra dar e não muito mais do que isso. Algumas mulheres seguem-se a eles de maneira menos confiante e mais. Incisiva. Tento compreender o contexto, mas. Afinal. O meu trabalho é só escrever, escrever não. Redigir. Nós redigimos as matérias, nunca. As escrevemos. A palavra “matéria”, inclusive, em conluio com “redigir”, estampam uma objetividade que buscamos e deixa a crer que nós conseguimos encontrá-la. Vocês percebem? Como a língua portuguesa é suficiente? Como ela é, muito mais do suficiente?
Deixo a mão direita voltar ao seu lugar, ambas. Se encontram no meu colo, agora e eu. Imprimo um sorriso enquanto uma colega fala. Ela foi à campo, foi. Coletar informações pra que nós. Pessoas como eu, pudéssemos. Redigir. Nela eu presto tamanha atenção e driblo o corpo que pede pra se levantar, pra, tirar a roupa. Insisto pra que as mãos peguem o caderno e anotem e elas me perguntam por que ainda eu tenho cadernos, em resposta. O ano é dois mil e vinte.
A palavra final é dele, ele diz, até o final do dia, ele diz, até às seis e nós. Dizemos tchau até logo, vamos escrever, vamos redigir, até as seis, querido. Quando
Meus olhos então são obrigados a desenquadrarem seu campo de cobertura e olharem pra além da tela, eu temia, eles passam a ver. O pequeno apartamento onde me encontro, não como circunstância, mas onde moro já há alguns anos, onde moro sozinha. Busco coagi-los de volta à tela ao caderno à tela, mas quando foi que eles obedeceram a mim? Preciso escrever, preciso. Redigir, mas não. Consigo porque. Tenho uma vontade imensa de. Machucar o meu corpo e estou. Tentando esquecer-me dela desde que. Acordei.
Acontece que. O flagelo inventado pelo dia de hoje, por esse dia chamado vinte e cinco de junho, por esta quinta-feira atrevida, é por demais criativo, eu diria. Irresistível, inovador, disruptivo. Hahaha. E pra obstruí-lo é necessária tanta força que eu não sei se.
Uma dor de cabeça vai ganhando peso conforme a resistência fica mais e mais necessária, resistência ao desejo de autoflagelação, ela funciona como um elástico. Elástico que, agora, está sendo forçado até quase arrebentar, como um filtro e também um castigo, mas pelo menos me impede de. Ceder.
Escrevo no insistente caderno de anotações: acordei com o impulso corrosivo de furar o meu olho direito e estou tentando evitar que isso aconteça. O que não muda nada.
Caso eu morasse com alguém pediria, por favor, que me amarrasse, que. Redigisse a matéria por mim, ou. Me alimentasse e me acolhesse e chorasse por mim talvez rezasse e não me deixasse de jeito nenhum furar o olho que não é meu, que é meu, e. Também de Deus. Hahaha.
Mas não há ninguém aqui
E a vontade é tão.
E já não consigo distingui-la do medo porque ela preenche cada parte do corpo, que é meu, que não é meu, os meus pés. Me levam até o banheiro, então, os meus braços. Dirigem as mãos até a gaveta, a do banheiro, sim e os dedos. Retiram da gaveta a tesoura, por fim.
Como uma cena que eu já vi, um retrato sub-reptício eu. Vivo mais este personagem de ficção que eu não conheço, que eu conheço, que sou eu, que não é e
Aproximo a tesoura do olho direito. Entre o espelho e os globos oculares: a mão – agora já quieta, agora já segura, agora não treme e nem vacila. Também todo o corpo, o mesmo que antes hesitava e se ausentava e voltava pra si. O que antes não sabia, agora. Sabe.
Deixo os dedos aproximarem as lâminas dos olhos, deixo. Devagar. E o estômago, os pulmões, os intestinos vão se preenchendo de uma matéria firme, velha conhecida, a certeza e. Não titubeiam as pernas, não hesitam os braços, tudo. Está como deve ser. Enfim.
Um pouco mais próxima a tesoura se encontra agora das pálpebras, entre uma perna metálica e outra: os cílios, os pelos dos cílios, observo. A beleza do encontro entre as lâminas pertence. Tão somente às coisas-máquinas, às engrenagens e aos patíbulos. Às edificações perfeitas e sem saliva. Tudo o mais que respira e come é. Incompatível com a beleza das coisas construídas e planejadas, dos animais edificados, de dentes afiados e consciência ferina, de certezas inalcançáveis à natureza e à Deus.
Ainda bem. Que existem essas partes do corpo: cabelos, pelos, unhas. Partes mortas passíveis ser retiradas, cortadas. Pedaços prescindíveis. Ainda bem.Alívio do corte – enquanto os cílios, em tamanhos diversos, caem na pia – eu só percebo quando o xixi começa a escorrer pelas minhas pernas. Desfruto. O momento, enquanto minhas mãos me seguram pelas bordas da pia, enquanto os olhos me fecham dentro do corpo, que é meu e não é meu, enquanto os lábios buscam ar.
O dedo indicador acaricia o resto de pelos nas pálpebras, desfruto. Outra vez. Passo de novo, devagar, os dedos pelos toquinhos de pelo e gosto disso e aproveito. Porque. Logo vou voltar pra cadeira ainda um pouco mijada pra dar conta do prazo e redigir, analisar as informações sem, deixar evidente esta análise, escrever, da maneira mais imparcial possível, da maneira mais imparcial, buscando sempre imparcialidade, sendo imparcial, neutra, neutro, distante, buscando sempre uma linguagem isenta, livre, despida de, qualquer julgamento ou, opinião, de qualquer ponto de vista convicção ideologia crença juízo crítica e isto é que é jornalismo. É isto que é
(Clique aquipara ler a segunda parte deste conto, “Cenho”, publicado no dia 22.07.20)