– Você precisa se reinventar, Seu Lúcio. Este é um bom momento para investir em novas formas de vender seu produto. Já pensou em se cadastrar nos aplicativos de entrega? Ou fazer umas marmitas e vender pro pessoal aí da comunidade? Quem sabe ampliar seu negócio com as pipocas?
*
– E o que foi que ela disse, homem?
– Disse que depositou na conta e que vai cair amanhã.
– Graças a Deus. Cê vai buscar no banco?
– Até posso, mas a gente não devia sair, cê sabe.
– Não sair como, Lúcio? Se tem que pagar o aluguel atrasado.
– A gente paga pela internet, sei lá, faz um depósito.
– Já viu esse desgraçado do Zé receber dinheiro em conta?
– Nem agora?
– Nem agora, já falei com ele.
– Vou amanhã então.
– Cê perguntou quando volta ?
– Ela disse que não sabe, mas acha que esse mês e o próximo vai ficar tudo assim mesmo.
– Credo, tanto tempo?
– É. Pelo que ela disse, o negócio tá ruim até lá pra eles, tem gente devendo, pedindo desconto.
– Se pra eles tá ruim, imagina pra gente. E o que vamos fazer depois que acabar o dinheiro?
– Inovar.
– É o que, Lúcio?
– Ué, inovar. Inovar nos produtos, nos serviços.
– Produtos cê tá dizendo a pipoca?
– É, ué.
– E vai fazer o que? Pipoca à bolonhesa?
– Sei lá, ela falou de pipoca gourmet. Eu acho que é tipo brigadeiro gourmet entendeu?
– Não.
– E como vai entender, né? Você não sai desse buraco, não vai até a esquina ver o que anda acontecendo no mundo, não se atualiza.
– Sair pra quê? Pra comer brigadeiro gourmet? Não, obrigada.
– Ela disse também pra gente se cadastrar em aplicativo de entrega.
– Pro povo receber pipoca gourmet em casa?
– É, sei lá, falou pra fazer marmita pro pessoal aqui da vizinhança. Tipo quentinha.
– Quem precisa de cozinheira é rico, pobre aprende sabe cozinhar.
– Se tá achando tão ruim, devia me ajudar a pensar em novas ideias.
– O máximo de inovação que a gente tá precisando nessa casa é trocar álcool 70 por cândida, tá muito caro.
– Pois tire sarro da minha cara o quanto quiser, mas o momento exige medidas drásticas!
– Cê é muito iludido mesmo né, Lúcio? Tua ficha não cai.
*
Taí uma coisa que eu não esperava ver: um banco cheio desse, uma fila dessa. E tem tanta gente assim pra receber dinheiro nesse lugar? Achei que esse povo fosse pobre. 9h da manhã, o banco acaba de abrir, uma funcionária, de máscara N95 e luvas de látex, passa pelos clientes pedindo, numa voz abafada, que se afastem uns dos outros, faz gestos evasivos a uma distância segura.
E essa aí na frente mexendo no celular? Não sabe que vai infectar o aparelho? Eu devia avisar. Tem tanta coisa que eles não sabem, esse povo daqui é muito burro mesmo. A gente, que trabalha pra uma parcela da sociedade mais informada, fica sabendo de mais coisa do que eles, esses que só trabalham aqui e vivem só aqui, o mundo deles é pequeno. Eu queria era ir embora, sempre quis, ainda mais agora, que os filhos já cresceram, não tem mais por quê, não fosse a Solange. Solange é muito apegada, agarrada nas coisas como elas são, não pode nada ser diferente do que já é, não tem cabeça pra inovação, só quer saber de casa, comida, aquelas porra de terreiro, minha mulher é ignorante, jacu, por ela ninguém se mexe, ninguém se apruma, ninguém melhora. Ela parece uma pedra, ela, uma mula empacada, há 35 anos casada com a mulata empacada. Se ela pelo menos fosse… se ela tivesse… a cabeça mais empreendedora, se ela não fosse tão carrancuda, a gente podia era tá, era tá longe, alugando uma casa pelo centro, onde as coisas acontecem, podia era tá ganhando dinheiro, mas ela é apegada, ela não olha pra frente, tá sempre imóvel, sempre no mesmo lugar.
– Senhor? Senhor, a fila!
Mal-educada, precisava gritar comigo? O tanto de gente ignorante que tem nesse lugar e Solange não arreda o pé daqui. Tá vendo? Fora os gastos todos que aquela mulher me dá, é roupa, é presente, até roubar ela já me roubou, queria dinheiro pra comprar oferenda, eu disse não, que eu não dou dinheiro de macumba pra ninguém, e ela roubou, tô casado com uma ladra.
– Acho que o senhor é o próximo.
*
Conta o dinheiro ainda dentro do banco, conta outra vez, faz um gesto impreciso com a cabeça e com os olhos em direção ao caixa, pensa em voltar, mas então olha extrato em suas mãos e acaba ficando parado no meio do caminho. É isso mesmo? Quase metade do que eu disse.
– Senhor, poderia se retirar? Enquanto não sair, nenhum novo cliente pode entrar.
Lúcio sai metendo o dinheiro na calça, sem enxergar por onde anda. Pensa que talvez tenham diminuído da doação o valor correspondente aos gastos que ele teria com o produtos, só pode ser isso. Mas também pode ter sido algum erro, melhor ligar.
– Seu Lúcio, justamente. Diminuímos do valor total recebido em doação os gastos que você não vai ter esse mês com o seu negócio. Essa quantia, que é pequena para você, pode ser significativa para outros. Então, esse dinheirinho que sobrou será repassado para um projeto que atende a população de rua.
– Aquele da empresa da Dona Aline?
– Da ONG, é. Não é uma empresa.
– Sei.
– Bem, já que você conhece o projeto, sabe: eles precisam mais do que vocês, não é?
– Mas o dinheiro foi doado pra mim, né?
– Os tempos pedem generosidade, mas, se quiser, eu posso conversar com a Aline…
– Não, tem nada não, imagina.
– Aliás, estava pensando em outras formas ajudá-los e me lembrei de sua mulher. Ela trabalha?
– Não, é dona de casa.
– Ah, então tem experiência com limpeza?
– É, dá pra dizer que sim.
– Eu tenho umas amigas que estão precisando de empregada na casa de praia, não acha uma boa dar uma viajadinha? Tenho certeza que lá vai ser mais seguro para vocês do que na comunidade. Vocês terão como ficar isolados e eu sei que aí isso não acontece, né?
– Aqui é diferente.
– Seja como for, lembre-se do que a gente conversou: essa pandemia abriu uma janela de oportunidade para crescermos, todas as grandes empresas estão aproveitando o momento para se repensarem, para usarem e abusarem da criatividade. Pense no que eu te disse, pense grande. Tenho até uma sugestão de nome pro seu novo negócio: “Pipocaria do Lúcio”. Que acha?
Eu conheço esse tipo de gente, conheço muito bem, eu lutei muito pra não ser um deles, esse povo jogado na rua, fedendo, gente que mete a vida no lixo, que cheira a merda, gente merda, eu me livrei disso, dessa podridão. Me livrei disso com o suor do meu trabalho, me livrei de entregar o corpo pra droga, isso é gente que não gosta de trabalhar, que não tem força de vontade, que não pensa grande, que não tem Deus, que não inova, eu quase, quase virei um desses, mas me salvei disso pela força da minha vontade e da minha fé e, se eu posso, eles também podem e, se ficam nessa bosta que estão, é porque querem. Eu sei, eu sei muito bem, essa vida é tentadora, te puxa, te suga, a vontade de usar, de cheirar, de beber é muito, muito grande, meu Deus, mas eu tenho fé e na fé eu pude sair dessas. Hoje eu num encosto o bico na cachaça faz 20 anos, faz 20 anos que eu trabalho mais de 10 horas por dia e só trabalho, nunca tive férias, nunca viajei pra lugar nenhum, nunca saí dessa cidade, mas sou íntegro, correto.
*
Solange, primeiramente, cala boca, Solange
hoje, Solange, você vai me escutar
tá vendo, Solange, essas sacolas aqui?
eu comprei queijo eu comprei tempero eu comprei leite ninho doce de leite o mercado inteiro Solange hoje eu vou empreender hoje eu vou inovar eu vou ganhar dinheiro eu vou pensar maior viu pensar grande
Solange nem chegue perto, porque eu tô infectado eu tô sim nem chegue perto
Solange agradeça o homem que bota comida na mesa Solange e não reclame
Solange eu tô tão cansado Solange eu tô tão exausto eu não quero mais você viu Solange
você é pequena me bota pra trás me segura não me deixa avançar empreender inovar
Solange você não lê você não sabe nada você só sabe cozinhar limpar arrumar fazer macumba vive atrás de mim eu mereço muito muito mais do que você eu
o mundo é de quem se arrisca So-lan-ge é de quem petisca de quem pesca o mundo é do pescador mulher
Solange
quem não escreve não tem nome
quem não tem nome não é ninguém
quem não é ninguém não tem voz independente da voz que tem Solange
você é ninguém mulher
Solange eu sei sei ler eles me ensinaram a ler Solange eu sei
Solange eu sei escrever eu sei contar eu sei meu nome eu tenho nome eu sei escrever eu sei ler eu sei contar você não sabe porra nenhuma não sabe contar não sabe falar Solange você não sabe nada
Solange o único nome que te deram e que presta é o meu
o meu sobrenome
Solange além de tudo você é mulher e se eu quiser eu ainda tiro o meu nome de você e boto em outra mulher porque o nome é meu e você não é ninguém e niguém não manda
tanto faz teu nome tanto faz tua desgraça tanto faz você
se eu quiser Solange se eu quiser eu vou embora eu saio dessa casa e eu vou ser melhor
vou atrás de tudo o que Deus me prometeu e você amarrou Solange
eu vou atrás do que é meu do que é de mim e do que é de mais ninguém e você me tirou
Solange meu nome é forte é bonito é nome de homem minha mãe que me deu a minha mãezinha que Deus a tenha disse eu vou ter homem vai ser trabalhador vai ser forte vai ser um leão vai ser a luz vai ser enorme e você me tirou mulher você me tirou tudo isso diaba desgraça macumbeira
meu nome era Lúcio e agora eu não acredito mais não acredito mais no meu nome em mim eu não sou ninguém eu não sou mais Lúcio Solange eu não sou mais o Lúcio porra nenhuma eu não sou mais o homem que a minha mãe pariu que o meu pai fez eu sou pipoqueiro eu sou um pipoqueiro só um pipoqueiro fodido meu nome não é Lúcio não
esse era o nome que eu queria ter
meu nome é Solange.
*
Solange, até então sentada no sofá comendo pipoca, abaixa o volume da televisão, encara o marido à distância, sem levantar-se e diz, como quem retira uma farpa do dedo de uma criança:
– Vá tomar um banho e trocar essa roupa, que eu tô sentindo o cheiro daqui. Que vergonha, Lúcio. Sabe ler e escrever, sim, mas de que adianta se você ainda não entendeu o que significam os nomes?