Sem as suas fotografias, Diana sentia um abandono invertebrado. Com elas, dizia aos seus netos entre sorrisos e um álbuns, apenas uma dor no fim do túnel. Aos netos porque desistira dos adultos, nunca fui um deles, na verdade, a minha vida não conhece tal degradação humana, de criança à velha eu passei num mergulho, cego. E se tivesse passado pelo que estes aí, contava apontado para os pais das crianças, chamam de “vida adulta”, teria sem dúvida desistido de respirar, e prendia o ar para fazê-los rir.
Pois, em tais circunstâncias, trancafiada em seu apartamento, como todos estavam, arranjara tempo para fazer o que mais gostava: redecorar seus móveis e eletrodomésticos, cada canto de sua casa, com as suas fotos. Dentre todos, apreciava com afeto apertado os retratos dos três netos, seus mais dignos interlocutores; na maioria, fotos que ela mesma havia tirado em fases diferentes de seus crescimentos, tão díspares. Para eles, dedico o espaço comprido do buffet da sala, de modo que eu possa almoçar, jantar e tomar meu café olhando para seus corpinhos ainda pequenos que agora, por desgraça, inventavam também de crescer. Outra benesse do isolamento: poder conversar com os netos como se nunca tivessem adolescido. Da adolescência ela só não desgostava mais devido à catástrofe que a sucedia, mas não deixavam de desagradá-la os arroubos de razoabilidade dessas quase-crianças. Então, para poder dirigir-se a eles da maneira como ela merecia, botava a fileira da infância diante da adolescência e, entre uma e outra, os bebezinhos macios que eles um dia foram – os quais ela retirava do buffet quando sentia-se especialmente sozinha e levava consigo para passear pela casa. Ademais, gostava de notar a diferença entre um e outro na mesma idade enquanto chuchava os alfajores argentinos no chá inglês, sem preocupar-se com leis diplomáticas infligidas em tal operação. Naquela casa, se comia gohan com feijão, tabule com coentro, puchero vegetariano e arepas com sardinha escabeche, só não se podia passar fome ou vontade.
Para o banheiro, reservava as fotos de sua filha, única e unicamente criada por ela. Não havia outras imagens dela no território e o motivo era óbvio: eram péssimas. As poses, as caras, os gestos; ao contrário de mim, a mãe de vocês nasceu adulta e um adulto insuportável, espero sinceramente que ela possa encontrar a infância na velhice. Claro que, esculpidas em tantos desgostos, as poucas Rosas que ela não havia jogado no lixo encontravam seu porto seguro no banheiro. Nos retratos em que ela exibe os dentes, nenhum da infância, seu sorriso é aprendido, ensaiado, desagradável e lindo.
A compra do apartamento onde residiam ela e suas exibições tinha sido motivada, na época, por uma idiossincrasia do imóvel, que, por um lado, o tornava mais barato em relação aos outros e, por outro, comunicava-se com certas propulsões íntimas de Diana: um dormitório de tamanho desproporcional. Guardei dinheiro toda vida para o dia em que a Rosa casasse. Aí então, eu sabia, ela nunca mais ia voltar para casa e eu poderia afinal morar no centro, num apartamento pequeno com um quarto grande – não demorou, como eu previa. No quarto apenas seria o destino das fotos que eu tirei e tiraram de mim. Diana registrara a si mesma nas mais distintas formas adotadas pela sua subjetividade comunicativa, desde a idade em que lhe fora possível posar, exibindo adereços e conteúdos. É claro que dá pra ver, em algumas, o aluguel de um vestido ou um estado de espírito emprestado, mas olhos nenhuns ousariam revelar a clareza desses indícios a ela.
O quarto era um museu de si para uso exclusivo. Quando sentia-se feia, mirava, em cima da penteadeira, os porta-retratos com fotos recentes: a velhice, ela pensava, lhe havia feito muito bem, calçava-lhe o rosto. Sou plenamente velha, gosto das rugas que tenho na medida certa em torno dos olhos, na testa e nos lábios; o cabelo que vinha tornando-se branco desde os vinte e cinco anos alcançara uma alvura inédita na ala feminina da Família, como ela sempre apontava ao comparar suas fotos com as das irmãs, da mãe e das tias; gabava-se inclusive de seu peso, porque velha magra é muito aflitivo. Diana gostava de como vestia a sua nova bengala também, herdada do pai, após a morte do seu primogênito, tendo passado pela rejeição das irmãs mais velhas, que achavam-na antiga. Antigas são elas.
No começo da quarentena, alguma parcela de paz. Antes, os netos, a filha e o sogro pressupunham uma necessidade de contato físico maior do que ela própria desejava, ou seja, eles viviam aqui. Ali, acolá, onde eu estivesse, mesmo à feira, às vezes, eles gostavam de ir comigo. O único lugar onde eu de fato fazia questão de que me acompanhassem era o teatro e explico-me: a força de um bom espetáculo é capaz de desatolar os corpos da imersão aconchegante da mediocridade, de todas as artes, a mais impactante. Porém, justo deste compromisso eles sempre davam um jeito de escapar. Ao cinema iam, o cinema os parece mais confortável. Seja como for, eu conheço a necessidade conservadora que infecta minha filha em quase todos os cantos de sua vida, inclusive a escolha do marido, e, diante disso, salvei pelo menos uma das crias. Como mais uma forma de diferenciar-se de mim e para a minha sorte, Rosa teve três crianças – quem dera ela tivesse tido um pai a quem pudesse contrapor-se e me deixasse um pouco mais quieta – e pelo menos uma delas, a mais velha, estava ali para os programas importantes. Seu interesse pelas coisas minhas, pelas coisas belas, gera um alívio inescondível nos seus pais que, tendo crescido na cidade, escolheram, para adequar o tamanho da alma às dimensões do contexto, viver no interior. Eles não sabem sequer o que perdem.
Conforme os dias foram alongando-se no isolamento, percebi que as paredes, ao contrário dos móveis, andavam vazias. A cada virada de pescoço que eu dava, deflagrava com susto mais um canto despovoado e branco. Diana recuperou então álbuns guardados no fundo do armário, aqueles serviam apenas pra constranger Rosa ou se divertir às custas da alegria de meninos que veem fotos de adultos meninos. Nunca consegui. Ela nunca se constrageu com a própria imagem, parece não ver o que eu vejo. Depois do contato com a primeira camada deste seu submundo iconográfico, arriscou desafogar as fotografias que nunca alçavam lugares de destaque. É claro que havia certo revezamento na logística de exibição das fotos, pelo menos uma vez por mês alguma das guardadas recebia lugar um receptáculo digno, ainda assim, havia aquelas que nunca deixavam a caixa. Eu preferia não pensar sobre elas. Fotos sem nenhum destino, nem foram ao lixo nem eram exibidas, largadas à sorte das traças.
Eu resolvi colocar todas para fora, cada um dos cliques abandonados, feitos pelos meus olhos e pelos de outros, encontrou lugar para morar em algum canto destas paredes. Levei dias para finalizar o trabalho, não queria que acabasse, e quando, enfim, terminei, quando percorri toda a minha casa preenchida por fotografias, do chão ao teto, fotos de mim, dos outros, fotos em preto e branco, fotos em sépia, fotos coloridas, senti-me tomada por uma potência divina que atravessava o corpo, como se, enfim, eu tivesse realizado a Criação, senti um preenchimento vazio, uma consciência, um assombro.
Em seguida, de maneira repentina e agressiva, nocauteou-me um cansaço estrangeiro. Dormi mais de um dia.
Acordei suando, com dores por todo o corpo e compreendi o que o destino me reservava. Todo furor e a grandeza do dia anterior abriam alas para o Nada. Na minha pequena malinha, coloquei algumas poucas roupas, eu sei que eles não me deixarão usar as minhas lá, deixei de lado os livros, que tanto amo, porque também sei que não haverá tempo ou disposição para ler, as fotos já não pertencem a mim e isso, sim, isso dói. O táxi chega, eu desço com todo o cuidado, máscara, peço para que o condutor abra todos as janelas e coloque minha bolsa no porta-malas. Quase no hospital, ligo para minha menina, peço que vá até a minha casa, a porta está aberta. Digo que a estou esperando no apartamento, mesmo sabendo a raiva que ela vai sentir quando perceber que a enganei mais uma vez. Em cima da mesa, deixo num envelope uma das únicas imagens minhas que ela nunca viu e este relato, gravado em fita cassete.
Rosa,
Esta sou eu grávida, reconhece? A foto é sua, fique com ela. Espero que você veja, nos meus olhos, o que eu demorei mais de quarenta anos para ver em mim mesma, mas sempre esteve ali: você.
Além da fotografia, quero que escute esta cassete dentro do gravador. Bote para tocar até o final, perdoe a tosse e observe como a vida é trágica: me descobri poeta tarde demais.
Amo você, amo todos vocês,
Mamãe.
PS.: Não toque em nada até eu voltar. Se eu não voltar, o problema seu.