Perfeito, é, sim, aqui, sem dúvida é o lugar perfeito. Atrás da geladeira, ninguém alcança, é quentinho. E úmido, sempre quentinho e. Sujo. Perfeito. Talvez um lanchinho. Ainda hoje, lanchinho, depois. Embaixo da pia, a Ana sempre deixa, um restinho de comida, um restinho de comida e, apesar da nossa vida, da nossa vida ter ficado tão mais difícil, tão mais difícil agora, agora que eles todos estão em casa a todo tempo e. Nossa vida sempre tão ameaçada, tão, tão minúscula, agora que está ainda. Mais difícil, mais difícil sobreviver, Ana, é nosso porto seguro, nossa esperança, nós. Somos fortes, somos muitos, sabemos. Encontrar, os melhores lugares, pra nos escondermos, os. Melhores lugares, pra reprodução, perfeito. Aqui está perfeito, vamos lá, meninos, vamos lá. Assim, muito bem. Um dois cinco nove doze vinte vinte cinco, ótimo. Esses bebezinhos vão nascer e vão nascer quentinhos e perfeitos. Muito bem, que alegria, meninos, muito bem. Logo assim, tão pertinho, da pia de toda essa. Sujeira. Ela não limpa, ela deixa e fica. Esse acúmulo, de cascas de cebola grãos de arroz farelo de biscoito farinha. Achocolatado óleo alho. Toda esta sujeirinha. Este alojamento é, o lugar mais adequado, mais. Adequado, é, o melhor de todos os apartamentos. Deste prédio já tão conveniente, excelente para nós, tão abandonado, não. Poderia existir uma lugar melhor. Para os meus nenenzinhos, nenéns, ovinhos, lá vem ela. Até que enfim, Ana, até, Ana. Levantou-se, do sofá, lá vem ela. Dia e noite sentada quente comendo e, queria eu ser tão atrevida, tão atrevidinha. E subir ali, um pouquinho, um pouco. Entrar nas frestinhas, que as almofadas deixam, entrar. Ali e comer bolachinha, farelo, toda essa imundície deliciosa que é essa casinha minúscula dela. Biscoitos e carne moída, nas frestinhas do sofá. De todos os alojamentos esse é. O mais saboroso, o mais. Sujo. O lugar perfeito para os meus bebês, bebêzinhos, os outros. Apartamentos estão tão, abandonados limpos e frios, estão. Muito solitários neste momento e sem. Restos humanos, restos, animais, não sobrevivemos, aqui. Ela sempre está aqui, ela. Nunca limpa este lugar, está. Sempre assim. Até mesmo, até mesmo a sua colega, foi embora e ela. Ficou aqui, ela afundou-se aqui, sim, Ana afunda a cada dia a cada dia mais. Todos foram, embora. Aqui. É o lugar ideal. O que acontece com ela hoje? Ela vai? Ela não. Parece bem, está. Meio manca ou. Ela bebeu. Está bêbada, olha só, perfeito, perfeito dia para botar os ovos e ainda, ainda explorar casa e ver se. Eba. Ela vomitou!, hihihi. Vomitou na pia, em cima da, louça suja, isso sim! É bom é imundo é perfeito, hihihi. Vai ter banquete, meninos, banquete. Muito bem, Ana, obrigada, obrigada, meu bem, não chore, não, mulher, não chora, Ana, obrigada, minha querida, eu quase. Sinto pena de você, Ana, você, esta besta humana, Ana. Esta besta tão desgraçada e tão humana, mas por quê, Ana? Você está, chorando? Eim? Não chore, Ana, a humana, não chore, veja pelo lado bom, você está. Me ajudando a criar os meus filhos, em meio a sua imundície, você está, me ajudando. Ajudando os meus bebêzinhos. Veja só. Você vai. Usar esse seu curso de pedagogia, você vai, usar esse seu curso para alguma coisa, vai. Me ajudar com os meus filhinhos, será. Que você, vai conseguir ser, será, a primeira humana. A nos alfabetizar, hahaha, que ideia deliciosa, Ana, que ideia, hein? Baratinhas alfabetizadas. Que ideia deliciosa. Seria perfeito, perfeitinho, revolucionário, absolutamente inédito, Ana, a humana, nos ensine. Ensine meus filhinhos a escrever. Ajude, faça com que eles tenham essa. Oportunidade inédita que. Eu não tive, sua mãe não teve, seu pai não teve, nem seus avós, que. Mal sabem falar e estão. Sentindo sua falta, mas você. Não vai encontrá-los porque. Aqui pode ficar, aqui, sem pagar nada e aqui, ainda ganhar, uma graninha, uma graninha pra comprar comidinha e me alimentar, hihihi. Não é, Aninha? Me diz. Vai criar meus filhinhos, vai? Você já é, é, um pouco como nós, sujinha como nós. Vamos lá, humana, vamos. Usar esse curso em pedagogia, pra algo além. De trazer piolhos, pra esse chiqueiro, trazer piolhos. Ainda assim, algo me leva a ter. Pena dela, algo me leva, ah, Ana, você está. Prenhe, você está, cheia, completa, buchudinha, está. Enorme, ah, Ana. Os humanos. As mulheres e seus filhos, seus filhos enormes, humanos gigantes, cheios de choro, cheios de pele ossos músculos gordura olhos enormes ouvidos cabelos unhas, cheios de excrescências e pelos, cheios de xixi leite cera merda pus lágrimas sangue porra, cheios de si, cheios de, corpo, enormes gordos grandes demais para. Sobreviver com sucesso ao. Planeta Terra, tão pouco. Adaptáveis, pobrezinha. Não voam, não nadam, não decompõem, não sabem nem se esconder, tão suja, tão. Sozinha, pobrezinha. Pare de chorar, Ana, seja tão humana, ame o seu filho, Ana. Sua barrigona enorme e todas essas excrescências, se você. Não fosse me esmagar, me esmagar, eu sairia. Daqui, mas. Você ainda, tem horror a mim, a mim. Não para um. Segundo. De chorar, tenho pena, pena. De você ter de carregar essa criança, esse bebê, tanto tempo, eu. Gostaria que você, que você pudesse botar seus ovinhos, eu gostaria muito, e sair correndo, como eu. Faço, como os homens, também fazem, eu gostaria. Ana. De poder te ajudar, eu. Tenho muita pena de você, do seu choro, da suas excrescências lamentáveis. Que você é, lamentável, você está fedendo bebida, está suja, com certeza, com certeza. Tem, um rosto tão fino, pernas, tão finas, que parecem as minhas e. Come e come e come, como eu. Ana, pobre humana, sozinha, sujinha e prenhe. Olhe só. Preste bem atenção, tenha calma, olhe só. Talvez. Quem sabe. Se eu sair daqui, de trás da geladeira, se eu sair. Com calma, talvez. Quem sabe, você não tenha. Ela não tenha, medo, tanto horror a mim, talvez. E se, mesmo assim, mesmo desse jeito, mesmo assim, mesmo com tanta calma, se mesmo assim. Você quiser, ela quiser, me matar, eu. Fujo, eu saio correndo, afinal. Você está grávida, está enorme e. Bêbada, tão. Sozinha aqui, há muitos dias, aqui. Nem. O homem que botou os ovos, em você, permaneceu. Aqui, com você, eu. Vou até aí. Ok? Com calma, tá bom? Eu vou. Olhe pra mim, Ana. Você me vê? Aqui! Sim, aqui embaixo, olá. Você não quer se sentar um pouco, não quer? Não se, jogue no chão, assim. Como. Se fosse, se acalme, pare. De chorar, por favor. Eu nunca vi, por favor, um ser humano, uma mulher, eu nunca vi, chegar assim tão perto, tão pertinho de uma barata, sem ter. Medo. Ana. Obrigada por se aproximar, por. Olhar para mim, eu. Acho que posso, te ajudar, está me ouvindo? Ana. Eu. Sei. Muito mais coisas do que imagina. Eu sei. Que vocês humanos são. Muito diferentes de nós, diferentes. Que vocês, mulheres, carregam tanto tempo na barriga esses filhotes, tanto tempo, filhotões, para depois. Dar à luz, que vocês, gostam de suas gestações, mas. Tudo isso, me parece tão, sujo e, tão nojento, e tão inóspito. Como, você vai. Cuidar do seu filhote, do seu filhote, se não. consegue cuidar nem da sua casa das. Suas coisas, como vai. Cuidar dos humaninhos para quem dá aula, depois, que isso tudo acabar, acabar, se estiver. Tão suja tão triste tão. Miserável. Você. Olha de forma tão profunda, para os meus olhinhos, você, para as minhas, você, para as anteninhas, você, para minha couraça, eu sei, sim. Que você está me escutando, Ana, a humana, que compreende, então, me escute. Ana, me escute. Não desvie os olhos, não se assuste, pare já, pare já de chorar um pouco, isso. Se acalme, isso, muito bem. Bem, nós, baratas, sabemos, sabemos, o que vocês, humanas, só algumas de vocês, conseguem entender e, você, Ana, você precisa me escutar. Você precisa saber, que, Ana, ter um filho, Ana, pode ser, Ana, a morte de uma mulher humana. E, Ana, a partir, do momento, Ana, em que ele nascer, você, poderá, contar o início do fim, do fim dos seus dias, então. Se não puder. Se não quiser. Esperar até sua vida ruir, se preferir. Se preferir viver, se tiver forças, pra viver, mate. Acabar com o filho é. A salvação da fêmea humana enjaulada, é. Para a mulher, liberdade. Agora durma, Ana, durma. Sobre o chão frio da cozinha, agora durma. Enquanto os meus, bebês crescem, atrás da sua, geladeira, humana. Durma, e não se esqueça, dos inseticidas, na segunda gaveta, não se esqueça, dos seus inseticidas, não se esqueça, do que eu disse. Durma bem.