Estendo minhas mãos em prece, hoje, para que o Senhor interceda no caso de minha sobrinha, internada na noite de ontem, no hospital Diógenes. Como muitos outros coitados, atacada pela doença, Aline padece sem poder respirar, entubada. Não consigo sequer imaginar, meu Deus, tamanha aflição. Graças a Ti, nunca estive mais do que poucas horas em um hospital, então não conheço seu sofrimento, mas sofro junto a ela, plena de compaixão e empatia. Apesar da menina não ter fé, e justamente por isso, peço eu, com toda a força da minha crença em Deus Pai, Todo Poderoso, pela sua recuperação. Como ela não é cristã e não pode, ou sequer sabe, rezar, Lhe imploro que interceda pela sua vida. Aline não segue os ensinamentos, desgarrou-se da família muito cedo, deixando sua mãe inconsolável, a quem, na época, eu acolhi. Além disso, a menina não tem filhos e nem marido. Por isso também, sou eu quem tem o dever de rogar por ela, pois não creio que haja mais ninguém que possa fazê-lo. Nós sabemos que ela era uma moça jovem… que ela é uma moça jovem e aparenta ser saudável, mas sabe Deus, ou melhor, sabe o Senhor – pois eu não sei – quais eram os hábitos que ela cultivava em sua vida na cidade, solteira. Eu, apesar de ser sua tia, irmã de sua mãe, e apesar de ter conhecido muito bem o homem que foi seu pai – com o qual aliás muitos da nossa família tiveram preconceito, não sem motivos, vejo hoje, e eu defendi como a um irmão – apesar de toda minha proximidade a sua história pregressa, antes de mudar-se para a cidade, não tenho conhecimento de seus costumes e suas companhias hoje, lá, mas posso imaginar quais sejam, conhecendo bem o núcleo familiar de onde ela vem. Por isso, inclusive, rogo para que seu corpo tenha forças para uma recuperação, que não esteja degradado pelos costumes. Do alto dos meus 66 anos, estou saudável e cultivo uma vida conforme o Senhor manda: mal recebo visitas, antes mesmo desta doença recair sobre nós, tenho muito cuidado com o asseio pessoal e com a higiene de tudo o que adentra o piso laminado desta casa; apesar de viúva, com a Graça do Senhor, não preciso de homem nenhum, além do meu filho, claro, que preenche sozinho o vazio deixado por Cláudio, que o Senhor o tenha. O que quero dizer, meu Pai, é que não preciso pedir por minha saúde, já que cultivo uma vida quase impecável em todos os seus âmbitos e, por conta disso, caso adoeça, não virei sequer a sentir, me recuperarei, pela força de Deus, e, por conta disso, por conta desse saldo do qual disponho com o Senhor, já que não preciso pedir por mim, posso então dedicar as minhas preces em prol de outros mais necessitados, como a pobre Aline. Pai, quando chegou até meu conhecimento que ela estava doente, Pai, pensei muito em sua família e fiquei aliviada por esta garota ser assim tão sozinha, ter perdido o pai tão jovem e ter sobrado apenas a mãe em sua vida. Pensei, meu Deus, que caso algo ocorra a ela, não há ninguém que dependa de sua companhia, de seus cuidados, de seus carinhos, ninguém que lhe deva favores. Logo conclui, sob Teus olhos e de acordo com Teus ensinamentos, que toda existência tem seu cunhão, seu propósito e, no caso das mulheres assim tão sozinhas, há de ser este: deixar o mundo sem prejudicar os outros, afinal, “O Senhor faz tudo com um propósito; até os ímpios…” Nós, aquelas que dedicamos nossas vidas ao cuidado, à amamentação, ao colo, à comida, à casa, à roupa, ao carinho, quando nos vamos, fazemos falta até demais, provocamos escaras irreparáveis com as quais nossos dependentes tem de se avir por toda a vida e, por isso, concluo: o Senhor nos fez mais resistentes. Concluo também que Deus nos deu a vida para que possamos dar vida aos outros e, neste caso, estando imbuída deste poder concedido a mim pela minha própria trajetória repleta de dedicação ao outro, de altruísmo, dou, através de Ti, vida à Aline. Amém.
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Vera sentiu sede, depois conversar com Deus.
Apesar da idade, ajoelhava-se e levantava-se como se fosse uma menina, mesmo na velhice, cultivava submissão a Ele com a força de seus músculos traseiros. Logo, lépida e leve, estava em pé na cozinha, no cangote do filho, que encontrou raspando as sobras do jantar no tupperware, e de colher.
– Deixa eu esquentar um pouco pra você.
– Que susto, mãe! Não, não precisa mais.
Heitor arrastou o quadril até seu quarto, para onde se dirigiu a fim de recuperar os batimentos cardíacos, sem fechar o tupperware ou ouvir a risada da mãe. Vera re-percebeu que o filho engordava, sem freios, nesta quarentena, e quase pensou no menino como um animal que se prepara para o abate, mas tal imagem-ideia foi reprimida antes de ascender à consciência e processada como a seguinte nota mental: Meu filho tem ancas.
Teve vontade de perguntar-lhe se não ia escovar os dentes, mas à rebote do cuidado materno viria – e ela sabia – um tipo de resposta agressiva masculina a qual ela bem conhecia, tolerava e apenas provocava quando tinha paciência, ou desejo, de ouvir o porquinho gritar, ultrajado. Heitor já é um homem.
Arrependeu-se por não ter pedido a Deus mais paciência para o filho e prometeu a si mesma rezar só para ele no dia seguinte. Distraíra-se com os pedidos pela sobrinha e tinha deixado de lado algo muito importante. Rogaria também por uma nora que lhe pudesse dar netos, pois a paciência com crianças era finita, e aos 66 anos já insinuava estar acabando. Anotou os pedidos no caderninho de orações, que morava sozinho na primeira gaveta dum mal-habitado criado-mudo – móvel cujo nome ela adorava, sem saber por quê, mas cuja funcionalidade ela não compreendia – e encerrou com uma observação: não mais distrair-se.
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Era meia noite e meia, Vera ainda estava acordada. O ronco do filho criava uma circunferência apertada em volta de sua cabeça, um capacete sonoro que a protegia do próprio sono. Não se lembrava da última vez em que ouvira o ronco dele, o barulho fazia parte paisagem sonora de suas madrugadas há tanto tempo que ela não chegava a saber como se dormia em silêncio.
Ela compreendia, portanto, que não era o filho quem a impedia de dormir, mas Aline. Pensava na sobrinha saudável; em suas roupas que largavam partes do corpo despidas; pensava nos tantos namorados apresentados a família, em quanto ela falava, comia, bebia; nas tantas convicções que a mulher carregava, convicções pesadas e pontudas, nas quantas palavras que a garota tinha; lembrava-se da vida pregressa de Aline e torcia para que a doença pudesse torná-la alguém melhor e mais útil para a sociedade, se ela sobrevivesse; julgava que talvez Aline tivesse vivido demais e gastado muito cedo a cota de vida que Ele havia concedido à menina. Claro, sim, era isso! Não sobrava mais vida alguma com a qual ela pudesse ainda se lambuzar, danadinha. A juventude não passava de um picolé do qual restava o palito na boca Aline, palito que, não sem motivos, Deus decidira jogar fora. Esta epifania – satisfatória para alguém que armazenava seu picolé com zelo no congelador, entre o hedonismo e a fraldinha – dava conta da aparente incerteza que orbitava em torno deste vírus safado que mantinha sua família em casa e o qual, agora ela sabia, levava apenas os palitos, nunca os sorvetes. Dito desta forma!
A resposta divina que se iluminava naquela consciência poderia até ser um prenúncio de calmaria, mas, dali a pouco, mais uma hora se passava antes que ela pensasse em descansar. Espantou-se não só com a falta de sono à uma e meia da madrugada, mas com a disposição. Não fosse tão tarde, limparia as paredes; não fizesse barulho, lavaria tanques de roupa; prepararia até o feijão da semana; cantaria! Então, ao dar-se conta das dimensões inéditas de sua vitalidade, viu os limites do entusiasmo estenderem-se e estenderem-se, não teriam limites? Sentou-se.
Naquela posição de ficar no claro, o escuro gerava um desconforto inusitado. Não, eu não tenho medo de escuro, mas. Ligou a luz e reparou que o lençol de elástico tinha saído do lugar; ela sabia, sim, que aquele conjunto era velho, talvez, talvez tivesse 15, ou 20, anos, era mais novo apenas do que seu enxoval de núpcias e que Heitor, claro, mas já não tinha mais tanta força. Ela julgava tampouco precisar de um lençol mais novo, pois seu sono não necessitava, até então, de qualquer reforço no suporte: era calmo e deserto de sonhos.
Ajeitou também a própria camisola e a calcinha, pensou se Aline poderia levar a sua própria roupa ao hospital. E eu? Caso fosse, um dia, Deus permita que não, entubada como ela, poderia usar a própria camisola? Pensou se a sobrinha usava fio dental, renda ou transparência, se usava calcinhas, de qual cores eram; indagou-se sobre o estado de alguém entubado, fica consciente ou desacordado?, dormido ou desperto?; Aline podia ler, usar o celular, rir, chorar?; como era afinal não conseguir respirar?; como afogar-se ou como nadar? Segurou o próprio ar alguns segundos, queria ver o quanto aguentaria. Achou graça de si mesma e atreveu-se a rir no escuro.
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Quando o sol bateu à janela, ela entendeu que tinha acabado de passar a sua primeira noite em claro. A primeira, em toda vida, sem sono. E como acordar sem ter dormido? Começar um dia sem ter terminado o outro? Não encarou nenhuma das perguntas com preocupação, mas com o gosto do frescor. Concluiu que, se o sol despertava, eu também poderia me levantar. O relógio apontava para o fato de que Vera estava saindo da cama meia hora mais tarde do que o habitual. Como posso ter passado tantas horas pensando? E como, depois de não ter pregado os olhos, tenho tanta disposição? Agradeceu a Deus, sentiu-se forte na plenitude de seu vigor e foi preparar o café da manhã. Tinha muita fome. No caminho, entrou no quarto do filho e apagou o abajur ligado, como fazia todos os dias. Uma vez na cozinha, bebeu meio copo de água morna com limão espremido, costume ao qual ela atribuía um sistema imunológico robusto, pensou que se o filho também adquirisse o hábito, talvez não ficasse gripado com tanta frequência e quem sabe curasse a psoríase que lhe comia o couro cabeludo.
Observou o desenho do sol que invadia a cozinha pela janela, gozou na certeza de um dia que começava, sorriu para si e não tirou mais o sorriso do rosto. Afinal, o que poderia ser melhor do que estar feliz? Apesar da tristeza que existe no mundo, apesar das dores dos outros, ser feliz. Sobre esta convicção, comeu pães de queijo e sorriu; imbuída de felicidade, chupou uvas maduras, tomou duas xícaras de café e sorriu; resplandecendo satisfação, lavou a louça e sorriu; certa de que a sorriso era única resposta possível, limpou o chão da cozinha, aguou as plantas no quintal e sorriu; pensando no marido morto, lembrando-se da mãe e do pai falecidos, imaginando Aline, sorriu, com todos os dentes, e continuou sorrindo.