20 peças de tacos de madeira do canto inferior direito do cômodo ao canto inferior esquerdo, de. Um ângulo reto ao outro e a. Janela no meio, de tudo. Da perspectiva de quem vê, claro, e quem vê sou eu. Que estou de costas para porta, de onde se entra e sai. A porta está. À esquerda, nas costas de quem vê. Quem vê sou eu. A porta e a janela estão em lados opostos do cômodo e o cômodo é um escritório.
No canto superior está; veja o canto inferior; ao meio, observe; está vendo?. É assim. Que nos comunicamos, agora, é só assim e. Não faz falta. Eu e os meninos do trabalho, só nos comunicamos assim. Eles não são meninos, na verdade, há mulheres também. Mas nós, aqui em casa, não. Aqui em casa, não falamos assim. Aqui há. Tridimensionalidade, 1. 2, 3, 4, 5. 16, 17, 18, 19.
30, 31, 32, 40 tacos. De aproximadamente 10 centímetros, de madeira, da porta até a janela, da janela até a porta, pelo chão. É claro. Da direita para a esquerda de quem vê, ou vice-versa. Do outro lado da parede, no quarto ao lado, o quarto ao lado. Aqui também poderia ser um quarto, mas, transformamos em escritório para podermos, trabalhar de casa, ou melhor, para que eu possa, o que é ótimo, excelente, ainda mais agora que. Estamos o tempo todo aqui, sem poder sair, e em nenhum outro lugar, eu. Ela. E eles. Consigo escutá-los daqui, é impressionante, eu fico impressionado, escutar daqui e. A porta está fechada! Talvez. É uma boa ideia com certeza, talvez. Possamos instalar isolamento acústico no escritório, porque. Nunca, o som da voz dos meus filhos foi tão, agudo tão alto tão estridente. Eu faria tudo. Para que eles calassem a boca. Eles e ela. E o cachorro. De uma vez. Até o cachorro não quer, calar a sua boca.
Será que eles sempre foram assim? Antes disso tudo, quero dizer. Sempre e eu não percebia? Ou, percebia apenas nas horas em que estava em casa e eu nem sempre…
Deite no chão, tape os ouvidos e se concentre – você já está pensando demais neles – rosto para o teto, olhos bem abertos, respire. Você tem o direito de não pensar neles, o dever de preservar em si, o direito de.
Observe de canto a canto, ca-da minúcia, ca-da espaço, ca-da pedaço do teto, inspire, como. Como se fosse uma tela, em branco, expire. Qualquer tipo de tela, você. Pode imaginar o que quiser: todo e qualquer tipo de tela, mas concentre-se. Isso. Nas telas, eu gosto delas. Concentre-se nelas, em sua realidade bidimensional, sempre. Tudo tão branco, tão profundo e branco em bidimensionalidade, a não ser. Aquele canto superior direito onde, há alguma coisa, uma mancha escura, uma infiltração?, teias de aranha?, traças? Infiltração. É melhor fechar a porta. Fechar a porta, eles sempre, ela sempre. Às vezes eles se infiltram por ali. Abrem a porta, me atrapalham, mesmo quando estou trabalhando, em reunião, trabalhando sozinho, em assuntos importantes, eles sempre me interrompem, eu. Deveria fingir que estou trabalhando, em uma reunião? Talvez falar um pouco mais alto ou.
– Amanda, eu vou ter de trabalhar até mais tarde, tá? Não precisa me esperar para jantar.
E mesmo assim, eles vão esperar, insistentes, ou melhor, insistente, ela, é ela quem faz questão de. Disso tudo. Mas não importa.
Bote os fones de ouvido para não ouvir, sente o corpo no chão para não sentir, olhe o teto acima para não ver, se possível, se esqueça até de si. Da mulher, dos filhos, do cachorro. Não se lembre de jeito nenhum de. De todas as vezes em que você preferiria nunca ter. Tido mulher-filhos-cachorro, nunca ter. Optado pelo pacote inteiro, eu. Vou não pensar. Neles, prefiro. Optar por não pensar, contar de novo os tacos do chão e multiplicar pelas estrelas por grãos de areia, eu prefiro, contar cada uma das ranhuras da minha mão, cada linha da vida, da morte, do que seja, contar carneirinhos, estrelas, números!, contar só números, perfeito, e somar a mais números, diminuir todos os números que eu contei pelas vezes em que eles me interromperam, me atrapalharam, se infiltraram, no escritório, na minha vida, no meu trabalho, hoje, passar. Um hora inteira olhando para a minha própria mão, perscrutar. Cada um dos dedos, as falanges, até me esquecer deles, por completo, eles. Não calam a boca!
*
– Você não ia trabalhar até tarde?
– A demanda caiu.
– Que bom, eu preciso de ajuda. Fica aqui com eles pra eu fazer o jantar.
Ela se levanta e sai, depois de ter falado comigo sem olhar para mim. Se levanta e sai e me deixa aqui, com eles. Nem sequer mexeu o pescoço em minha direção. Esse bebê, que mal anda, que mal fala, que mal é e. Esse outro bebê, maior. Eu. Tenho de me lembrar a toda hora de que ela não é um bebê, é. Uma criança. Que já anda que já fala e que olha de um jeito diferente de um bebê, um jeito… Humano, inquieto. De um jeito machucado, às vezes, de um jeito, ferido, como um bichinho, às vezes ela olha pra mim de um jeito tão ferido, às vezes tão humano, pelo menos, ela já. Brinca sozinha. Ela brinca sozinha, mas brinca para mim, olhando para mim. Não comigo, mas para mim. Às vezes me entrega alguma coisa, pede que eu a ajude, mas ela não interage, comigo, ela faz de mim uma das suas bonecas, será? Que a criança sempre está brincando sozinha? Mesmo quando há outras crianças, quando há outros adultos? E os adultos.
Ela se cansa de mim e vai até o irmão, que balançava as patinhas, faminto de atenção. Mariana fala com ele como a mãe falaria. Talvez de maneira ainda mais afetada do que a mãe, mais alta, mais insuportável. Como se a mãe não fosse cuidadosa o suficiente e ela precisasse superá-la, estridentemente delicada, ah! É como se ela enfiasse a mão no meu cérebro pelo ouvido, essa desgraçada mãozinha afiada. Eu queria…
Ela reprime o menino apontando o dedo contra a carinha dele, como a mãe dela faz com ela, mas nunca com o menino. Ele é pequeno demais para ser reprimido com dedos na cara, pensa Amanda. Mariana briga com ele e depois compensa sua dureza afagando a pele fina de seu rosto com o dorso da mão, ela chega bem perto do menino, nariz com nariz, quase beija a boca dele e ele. Explode em pavor pelos olhos. Ou fascinação, o que é a mesma coisa. Sim!, ele tem muito mais medo da irmã do que da mãe, sim, ela venceu! Paralisado, mudo, ele denuncia o poder que o corpo da bruxinha exala e só nós, eu e ele, podemos ver, pois aprendemos a detectar sua influência através do cheiro.
Enquanto ela segura com as mãos os seus pulsos, ele não pisca, quase não respira. Ela se parece tanto com a mãe dela e com a minha mãe, todas elas se parecem tanto quando são mães e mesmo não sendo, apenas. Por terem nascido meninas, mulheres, são todas. Iguais, infernais. Ele chora, já era hora, o choro de horror dos cativos. Vamos embora, meu filho.
Pego Gabriel no colo, mas não adianta, eu. Não tenho peito, não tenho encanto, se ele. Pelo menos falasse, pediria que me distanciasse, se pudesse. Me esmurraria. Mas tudo o que pode fazer é me empurrar com mãozinhas e berro, ah. Eu também não gosto desta situação, filho, odeio quando você chora, queria. Te entregar para ela e voltar, a contar formigas. Nunca mais, interagir com você, até que. Você aprenda a falar e a dizer o que sente e a brigar comigo, eu… Eu gostaria de dizer tudo o que você precisa saber sobre o mundo, sobre elas, mas. Você ainda não aprendeu a ouvir.
Mariana levanta os bracinhos e pede para carregá-lo. Digo que ele é muito pesado para ser segurado por ela, o que é mentira e ela sabe. Ela não gosta da minha resposta, ou melhor, não se contenta com ela: cruza os braços e os beiços sem sucesso, então resolve delatar minha intransigência e o desespero do irmão para a mãe. Como se fosse possível ignorar seu chamado, que emana do âmago deste ser ranhento como um tiro no saco.
Amanda aparece, até que enfim, e bota o menino no peito – só alguém sem saco mesmo pra ser capaz de fazer um negócio desses – ele não está com fome, mas mama. Ela sabe e eu sei que ele não está com fome, talvez até Mariana saiba, ele também sabe? Ou confunde fome com desespero com desgosto num só tesão de sucção? Mariana olha para a mãe, para o peito da mãe, mas ela tem o olhar enfiado na cara da criança, que não só se aquieta como dorme. Quem não se acalma com uma boa mamada?
Permanecemos os quatro, ali, no quarto deles. Nossos olhares não se encontram: traçam diâmetros divergentes. Os adultos observam os cantos inferiores do cômodo, procurando onde aportar a mirada, para que elas não se choquem, de jeito nenhum, ou. A colisão provocaria acidentes graves. O bebê não vê mais nada e Mariana? Segue olhando o peito da mãe.
Amanda me entrega o Gabriel já dormindo e eu o boto no berço. Está claro que ela mesma poderia tê-lo colocado, mas a mulher está doente para delegar tarefas para seu marido ausente, como ela gosta de dizer, ela. Não sabe o que é ter um pai ausente. Mariana se agarra na perna direita das minhas calças, olha para meus olhos e mostra os dentes, eu detesto. Esse sorriso de admiração cega que ela bota na cara.
*
Preferiria passar fome a ter de ir para mesa agora. Brócolis, arroz integral, cenoura e frango. Seria possível haver comida mais insossa, comida mais saudável? Ela não vai conseguir me fazer gostar desse tipo de coisa, se continuar servindo ração. E mesmo que isso fosse, de fato, agradável em alguma medida ao paladar, quais seriam os próximos passos se eu aceitasse chegar até aqui, até o brócolis com arroz integral, o que mais. Ela poderia vir a servir, no dia em que eu aceitasse ser alimentado com isso na mesa da minha própria casa, no dia em que? Eu aceitasse de bom grado e fingisse que tudo está muito gostoso, que de fato. Eu gosto. Desta merda, hã? Qual seria o próximo passo?
Engulo o mínimo possível. Deixo no prato quase a metade do que ela me serviu, falta sal. Amanda me pergunta se não estou com fome, por que não como mais, se a comida está ruim, mas sabe que eu não posso. Não posso de jeito nenhum falar a verdade, eu gostaria muito de falar a verdade, gostaria mesmo, preferiria poder falar a verdade do que ser chupado por ela embaixo desta mesa, eu queria. Despejar toda a verdade no colo dela, jogar contra a parede, incendiar a verdade, mas ela sabe. Ela sabe que eu não posso de jeito nenhum dizer o que penso, nunca, aqui, então, evitamos. A verdade a todo custo em todo canto aqui. Na mesa, na sala, na cozinha, no escritório, no quarto, na varanda; evitamos a verdade na cama, na despensa, na área de serviço, evitamos no café da manhã, no almoço, no jantar e no banho, evitamos muito bem na hora de dormir, e de tanto evitar ela se reproduz, entope a pia, bagunça os lençóis e quebra os vidros, ela. Entra pelas frestas das portas, decompõe as comidas, se infiltra pelas paredes e é. Tudo o que temos nesse momento. Tudo o que nos sobrou é a casa entupida de verdades até a porra do teto. Vazando pelos ouvidos e se enfiado em nossos rabos, ninguém mais. Aguenta viver aqui, só Gabriel… Gabriel adora ama deseja todo o tempo estar aqui só porque a mãe as tetas da mãe o colinho da mãe também habitam esse mesmo espaço e ele pode, sem nada que o impeça, sugar até murchar as tetas inteirinhas dela e deixar só pele e osso para mim. Então. Só pelo prazer de me ver contorcer, deste lado da mesa, então, só para poder agarrar com as suas garrinhas de controle o meu saco, de maneira limpa e fria e silenciosa, só pra. Inspecionar cada partícula que ousar adentrar o meu corpo, o corpo dele, o corpo dela, e tentar. Me fazer sentir uma merda por não gostar desta bosta que ela faz, ela me pergunta. Se eu gostei. Da comida. Que ela fez. E eu digo. Que sim. Mas
– Estou sem fome.
Sou o primeiro a me levantar, assim que recebemos a autorização. Ajudo a tirar a mesa, lavo a louça e convido Mariana pra comer batatas fritas no sofá. A menina sai correndo pro meu colo, enquanto Amanda, claro, me encara esbugalhada e eu devolvo sua consternação contida com a plenitude do sorriso de quem compreende ser mais forte.
*
Ela me acorda e acorda minha filha, pede que a gente vá para cama dormir. A menina olha para mim como quem diz “que saco”.
Mariana levita pela casa desmaiada em meu ombro, tenho vontade de levá-la comigo para dormir, mas. Nós sabemos que a mãe não deixaria. Deito um pouco na caminha dela, depois de escovar os seus dentes e Amanda para na porta para nos observar, me permite ficar ali, enquanto verifica o sono do Gabriel no berço ao lado. Penso nele, quietinho, quentinho, só ela sabe deixar esse menino assim, nesse estado, de paz, tão quente, tão. Ela volta. Pousa a mão na minha cintura e. Eu sinto o calor e o cheiro do menino, o cheiro de leite, o calor do peito, é. Tão bom, ela sussurra leve no meu ouvido, morna, pedindo delicada que eu me levante, ela é. Tão miúda, ela. Tem uma voz tão amaciada. Um voz aconchegante, passada à ferro, toque de algodão, eu, não, eu não. Quero sair daqui, quero. Ficar aqui, dormir aqui, no ombro quente, da minha filha, ouvindo a voz, da minha mulher, dizer meu nome, baixinho, meu nome, meu nominho, eu quero. A mão dela é tão miúda ela é tão delicada. Na minha cintura, a voz quente. Entrando pelo ouvido, pra dentro do meu corpo, me preenchendo, inteiro, ah. Eu me levanto. Chego bem perto dela. Quanto silêncio, mulher. Então empurro seu corpo contra a parede, num impulso único e certeiro, aperto toda a circunferência dos meus dedos contra seus pulsos e um baque surdo se escuta. Ela sabe que estou rindo, sabe sim!, mesmo sem que possa ver, porque ela sente a respiração que venta do meu sorriso. Amanda reclama, diz que seu braço está doendo e eu pergunto se não são os punhos. Ela fala tão baixinho, quase não escuto, então tenho de chegar ainda mais próximo dela, pressionar seu corpo todinho contra a parede, estrangular seus punhos, sentir o gole seco que ela dá pra segurar as lágrimas, o medo eletriza suas costas e sua fala. Quando chega até mim, esta corrente se transforma em vigor puro e delicioso. Finco meus dedos ainda mais na pele dela e empurro seus braços em direção aos ombros, toco a sua testa com o meu queixo, sinto seu suor, seu peito se esfrega na minha barriga, tenho vontade de arrancar seus cabelos com os dentes, morder a sua cabeça, agora sim estou com fome, Amanda, me dê de comer! Ela sabe o que pode acontecer aqui, sim, mas hoje não, hoje nada vai acontecer. Solto seu corpo e ele desmorona sem resistência no chão. A mulherzinha chora, resiliente, em consonância bela e absoluta com a tatuagem que exibe seu pulso, na qual a palavra, agora marcada pelos meus dedos, aparece em inglês: resilience. Seguro seu rosto, largado no chão, para sussurrar em seu ouvido, devagar:
– Ainda bem que temos um ao outro neste momento tão difícil.