Então ela viu. Num dia como os outros: depois de ter sido acordada, como todos os dias, pela luz que penetra seus olhos às 6h da manhã, tendo passado antes pela janela, aberta com esta finalidade, e pela pálpebra, intermediária da operação; depois de ter feito com cuidado microscópico e administrado com zelo higiênico todas refeições do filho alérgico a glúten, lactose e amendoim; depois de 5 videoconferências – 3 delas com seu chefe neurastênico e 2 com clientes soporíferos – nas quais foi compreendida de maneira equivocada por todos os seus interlocutores em algum momento da conversa e à despeito do preciosismo com que emprega as palavras e o cuidado com que constrói sintaticamente as orações, justamente para que esse tipo de má-interpretação não ocorra; depois de brigar com o ex-marido ao telefone, por conta da empregada doméstica que a nova esposa dele insiste em manter em casa, apesar de entender – ah, ela entende – o risco de contágio que essa situação impõe a todos os envolvidos, incluindo e principalmente o seu menino, cuja saúde – todos sabemos – é frágil, e concluir que afinal essa vaca não tem descendentes nem escrúpulos; depois de, sem muita dificuldade, ter convencido esse mesmo homem a deixar consigo o filho – o qual surpreendentemente eles ainda dividem em comum – até o final do período de isolamento social, sem se importar com horizonte mal delineado que a pandemia impõe; depois de lidar com o choro da criança, inconsolável ao descobrir que não voltaria a ver o pai tão cedo, e com seu próprio arrependimento, que não teve sequer tempo de ser felicidade antes; depois de ajudá-lo com os devastadores deveres de casa durante 3 horas de paciência sólida, atribuição que ela carrega, pesada, junto a outras obrigações do ofício materno, mesmo após tomar um tapinha birrento no braço direito, acompanhado de um biquinho sem vergonha, e tê-lo repreendido sem severidade suficiente, pois achava que o garotinho ficava fofo com aquela carinha de bravo; depois de tê-lo botado para dormir, ter lavado e estendido um tanque de roupa e enquanto guardava a louça muito bem limpa do jantar; antes, porém, de dirigir-se para o segundo banho do dia, preparação contundente para seu sono profundo, o qual ela sempre aproveitava, na ausência do filho, para masturbar-se devagar e com força, do jeito exato que ela gosta de ser tocada e não o é faz uns bons meses; ela viu. Viu a notícia irremediável que habitava cada uma das coisas, os objetos, as roupas, os panos, as louças. Viu o corpo animal que morava atrás do filé mignon, um pedaço da traseira de um cadáver, profilaticamente armazenada para evitar a putrefação; viu o resto de sêmen e de endométrio que moram na pele, nos ossos, nos cabelos do filho, além da trepada, do ódio e da paixão tão fúteis que ajudaram a edificar aquele protótipo de adulto; viu as veias roxas e azuis que moram na própria mão e não soube interpretá-las; viu a areia que mora no vidro; o sol que mora na lua; o medo que mora na noite; a morte que mora no sono e não pôde dormir. Não bebeu nenhum gole d’água, nem botou nada nada na boca, no ouvido, ou nas narinas; ao invés disso, tirou do corpo o que era possível retirar. Teria arrancado os cabelos, as unhas, os olhos, se tivesse mais força, mas, permaneceu em pé, apenas, nua, claro, na cozinha (aguentando a visão insuportável das coisas), até que o filho, pela manhã, ao acordar no mesmo horário em que ela acordaria e encontrá-la daquela maneira, tirasse também o seu pijama, sem relutância ou perguntas, e pedisse colo.
2 comentários sobre “É O QUE É, NUNCA O CONTRÁRIO”
Os comentários estão desativados.
Nati, parabéns! Você tem uma habilidade incrível.
Gosto demais de ler seus contos. Me fazem viajar para fora e para dentro de mim.
CurtirCurtir
Que lindo comentário, obrigada! ❤
CurtirCurtir